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Por Flavio F. de Figueiredo e Leonardo Castro

De tempos em tempos surgem certos produtos cujas marcas se transformam em sinônimos daquilo que denominam. À medida em que a história vai sendo esquecida, as pessoas passam a não saber que certas designações não correspondem a todos os produtos da categoria. Exemplos não faltam: gilete, miojo, bombril, sucrilhos, durex, aspirina etc.

Um desses casos recentes, em nosso mercado, é a marca Uber, que vem sendo usada correntemente para designar aplicativos de transporte que, resumidamente, consistem em plataformas que conectam usuários a motoristas parceiros. O trabalho dos motoristas tem caráter eventual e a qualidade de cada serviço prestado depende sobretudo da dedicação do profissional que o aplicativo designou para atender cada demanda de clientes.

Em razão do ineditismo da solução, termos correlacionados surgiram, sendo um deles “uberização”, para designar trabalhos realizados sem vínculos, conforme demanda, distribuídos por plataformas que conectam usuários e prestadores de serviços.

Assim, há plataformas nas área de serviços domésticos, de atendimento mecânico, de aulas etc.

Normalmente, quem procura uma plataforma dessas sabe que sua função é realizar a conexão, não é prestar o serviço. As qualidades da plataforma estão relacionadas a agilidade, quantidade de opções oferecidas e atendimento ao cliente, dentre outras.

Até aqui, tudo bem, tudo normal.

A uberização da perícia

A questão assume outros contornos quando se fala em perícias técnicas e, sobretudo, em perícias judiciais. Nos últimos anos, tem aumentado a quantidade empresas nomeadas por juízes para atuar na função de perito judicial.

Vislumbrando tal nicho de mercado, algumas plataformas — ou estruturas similares — têm se cadastrado nos tribunais para serem nomeadas como se fossem empresas especializadas em perícias judiciais, com atuação em muitas especialidades técnicas, as vezes em vários estados brasileiros.

É algo que, de fato, chama a atenção: em um mercado complexo, que exige ao mesmo tempo especialização, disponibilidade e distanciamento dos litigantes, surgem empresas que dizem conseguir atender a todos os requisitos independentemente do objeto a ser periciado.

Em suas apresentações, essas empresas normalmente omitem suas condições de plataforma para conexão entre usuários e prestadores de serviços — em outras palavras, de intermediárias entre profissionais e o Poder Judiciário. De forma muito bem disfarçada, colocam-se como empresas com quadros profissionais extremamente abrangentes — deixando de lado a informação de que tais profissionais não são seus colaboradores, mas sim seus “parceiros” (também clientes).

Acima dessas sérias questões, o ponto fundamental é o seguinte: quem o juiz está nomeando para atuar como perito judicial ao nomear uma plataforma? Ninguém, nem o próprio juiz sabe – e isso é um problema.

Reflexos processuais de uma perícia sem confiança

De acordo com o CPC (Lei nº 13.105/2015) a nomeação do perito é realizada diretamente pelo juízo (artigo 156, §1º), ou a partir de acordo entre partes (artigo 470).

Ao serem nomeadas, as plataformas normalmente evitam atender ao disposto no § 4º do artigo 156 do CPC, que determina prévia informação dos nomes e dos dados de qualificação dos profissionais que participarão da perícia (fundamentais para verificação de suspeição ou impedimento). Dito de outra forma: ao nomear a plataforma, não se sabe quem é nomeado.

Isso faz com que o ato da efetiva nomeação, que é prerrogativa do magistrado, seja delegado a um terceiro: a plataforma intermediadora.

Nasce o primeiro ponto de atenção: qual será o critério adotado pela empresa para a seleção do profissional? O que mais rápido responder à solicitação, ou aquele com menor custo? O que tem “cinco estrelas”, ou aquele que realizou mais perícias no passado?

Não sendo o perito escolha das partes e nem do juiz, estar-se-ia entregando a sorte do processo judicial à mão de um terceiro escolhido por critérios escusos — e não necessariamente sua capacidade.

O impasse se dá quando tais inovações debilitam a ordem jurídica e não se alinham a pressupostos básicos do processo civil e, por que não, do próprio sistema jurídico brasileiro.

Não se pode esquecer nunca que, especialmente para temas sensíveis — como é o caso da Justiça — todo cuidado é pouco.

Flavio F. de Figueiredo, é engenheiro Civil, consultor, autor e coordenador de vários livros sobre vistorias e perícias, conselheiro do Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia de São Paulo (Ibape-SP) e diretor da Figueiredo & Associados Consultoria e Leonardo Castro,
é advogado, especializado em direito processual civil e integrante do escritório Silveiro Advogados.

Fonte: Conjur