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Por Caroline Pomjé *

No dia 28 de agosto de 2023, a 2ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Novo Hamburgo (RS) reconheceu a existência de uma união estável poliafetiva entre um trisal — como é popularmente conhecida uma relação afetiva envolvendo três pessoas — formado há mais de dez anos entre um homem e duas mulheres. O nascimento do primeiro filho foi um dos motivadores do pedido de reconhecimento judicial, tendo em vista que a família buscava o direito ao registro multiparental, ou seja, que no registro civil da criança constassem os nomes das duas mães e do pai.

O reconhecimento da existência do relacionamento poliafetivo pelo Judiciário gaúcho ocorreu após a impossibilidade de oficialização extrajudicial, diretamente em cartório, do relacionamento. Tal impossibilidade decorre do posicionamento firmado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2018, quando da apreciação do Pedido de Providências nº 0001459-08.2016.2.00.0000, em que se entendeu pela proibição de lavratura de escrituras públicas declaratórias de uniões estáveis poliafetivas pelos tabelionatos de notas.

As uniões poliafetivas, conforme definição empregada pelo CNJ, correspondem ao relacionamento “múltiplo e simultâneo de três ou mais pessoas”, sendo que em tal situação os indivíduos envolvidos fazem parte de uma mesma relação amorosa (diferenciando-se das famílias simultâneas, em que há, por exemplo, um casamento e um dos integrantes dessa relação casamentária mantém, simultaneamente, com ou sem conhecimento do(a) cônjuge, um núcleo familiar com outra pessoa). Ainda de acordo com o CNJ, tais uniões seriam pouco debatidas na comunidade jurídica e não estariam incorporadas na sociedade de modo suficiente a ensejar o seu reconhecimento como entidades familiares.

Fato é, no entanto, que relacionamentos poliafetivos existem — como o que foi objeto de reconhecimento pelo Judiciário gaúcho —, representando uma realidade vivenciada em muitas áreas do Direito: as relações sociais passam por constantes transformações, de modo que as respostas jurídicas aos questionamentos sobre direitos e deveres vinculados às relações, inclusive as desenvolvidas dentro do ambiente privado familiar, normalmente demoram a ser estabelecidas de maneira segura.

Embora esteja sendo tratada de modo mais recorrente nos últimos tempos, a temática das uniões poliafetivas é ainda recente. Além dela, as uniões simultâneas também desafiam soluções jurídicas, apesar de tais situações já serem objeto de análise pela jurisprudência brasileira há alguns anos. Ainda em 2010, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.157.273/RN, a ministra Nancy Andrighi destacou a necessidade de que a análise sobre os paralelismos afetivos nas formações familiares fosse assentada “na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade“.

Nas duas situações, tanto das famílias poliafetivas quanto das famílias simultâneas, as dificuldades jurídicas perpassam o reconhecimento das entidades familiares e também a delimitação dos aspectos patrimoniais relacionados. Assim, reflexos envolvendo a partilha de bens adquiridos ao longo dos relacionamentos, divisão do patrimônio em caso de falecimento de um dos envolvidos na relação e até mesmo os impactos previdenciários quanto à divisão dos benefícios oriundos da previdência social são temas que ainda pendem de uma plena definição pelos tribunais nacionais, pois as previsões constantes na legislação atual muitas vezes são insuficientes diante da complexidade das relações.

* Caroline Pomjé é sócia da área de Direito de Família e Sucessões do escritório Silveiro Advogados, é mestre em Direito Privado pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), doutoranda em Direito Processual Civil pela USP (Universidade de São Paulo), professora de Direito Processual Civil na Faccat (Faculdades Integradas de Taquara) e autora do livro O Direito de Família no Processo: um Estudo sobre a Aplicação do Princípio Dispositivo em Sentido Material e do Princípio da Congruência em Ações de Família (Editora Thoth).

Fonte: Conjur