Não se pode confundir as empresas com as pessoas físicas que eventualmente cometem atos fraudulentos
Daniel Báril e Luisa Siebeneichler Henze
Não precisa ser ator do filme O sexto sentido, nem mesmo possuir capacidades mediúnicas, para se poder dizer, no Brasil, “I see dead people”. Isso porque para se ver pessoas jurídicas mortas, ou praticamente mortas, basta circular pelo mercado empresarial, que nos depararemos com estruturas empresariais que padecem de uma série de mazelas, muitas delas suficientemente deletérias a ponto de ou não lhes permitir sobrevivência, ou, para tal, delas exigir um remédio amargo, dentre eles os dispositivos da Lei 11.101/2005.
Entretanto, se por um lado percebemos a necessidade de melhor desenvolvermos esses institutos insolvenciais, de forma a se permitir um número cada vez maior de reestruturações de sucesso, de outro lado, quem milita na área perceberá neste ano de 2023 um maior número de suscitações de fraudes e imputações criminais por parte dos credores.
Pudera. Além do relevante aumento do número de recuperações judiciais espalhadas pelo país, ainda tivemos, mais recentemente, o deferimento de casos de proporções gigantescas, dentre eles o das Lojas Americanas, com um rombo contábil de dezenas de bilhões de reais, e o da 123 Milhas, que além de informar mais de 700 mil credores possui nuances de uma operação empresarial cujas premissas são bastante frágeis.
No caso da Americanas, a busca do processo de recuperação judicial foi a solução encontrada após a publicização de “inconsistências contábeis” que chegavam a R$ 20 bilhões. Imediatamente os credores e as autoridades públicas passaram a buscar indícios do cometimento de crimes falimentares premeditados. Inúmeras instituições financeiras, representadas por grandes escritórios de advocacia, apresentaram, nos autos do processo de recuperação judicial, alegações de fraude por parte de sócios, administradores e contadores da empresa.
Em paralelo, uma Comissão de Inquérito Parlamentar foi criada na Câmara de Deputados para apurar as eventuais fraudes, além de terem sido apresentados Projetos de Lei por meio dos quais se buscam leis de governança corporativa mais duras para combater a corrupção em empresas privadas.
Apesar das alegações de fraude, no caso da varejista o juízo recuperacional determinou o processamento da recuperação judicial da empresa e estabeleceu que as alegações de fraude e outros crimes devem ser apuradas em processos autônomos, para produção de provas e apuração dos responsáveis. O objetivo é que o processo possa seguir, resguardando-se a preservação de um negócio que possui milhares de clientes, fornecedores e funcionários.
Já no caso da 123 Milhas, no qual inúmeros credores, em especial as instituições financeiras, também suscitaram que a recuperação judicial estaria sustentada em fraudes cometidas pela empresa, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) chegou a suspender provisoriamente o processo de recuperação judicial para realização de uma constatação prévia, que é basicamente uma perícia para apurar se a empresa possui de fato condições de funcionamento e eventuais fraudes.
Estes casos de grande repercussão, que envolvem um espectro de milhares de credores e nos quais se suscitam hipóteses de fraude, parecem ter dado tração à perspectiva de que todo processo de reestruturação carrega consigo nuances fraudulentas, o que está longe de ser uma verdade.
Não se pode, nesse sentido, confundir as empresas, que são as pessoas jurídicas que geram inúmeros postos de trabalho diretos e indiretos, atendem consumidores, pagam impostos e são as responsáveis pelo avanço da economia, com as pessoas físicas que eventualmente cometem atos fraudulentos. Não há dúvida de que as pessoas físicas podem e devem responder caso devidamente comprovada a sua responsabilidade, o que não impede, de forma alguma, o soerguimento da empresa em crise pelas vias legais da recuperação judicial ou extrajudicial.
Ademais, essa nova perspectiva parece se sustentar num modelo de criminalização da crise empresária, razão pela qual faz sentido lembrarmos o mundialmente consagrado autor Nassim Taleb, que na sua obra Antifrágil: Coisas que se beneficiam com o caos defende, com alguma dose de humor, a definição de um Dia Nacional do Empreendedor. E quando ele assim o refere, não pense que o faz pensando apenas no empreendedor de sucesso. Ele se refere também àqueles que eventualmente sucumbem. Tanto que recomenda: “Para progredir, a sociedade moderna deveria estar tratando os empreendedores arruinados da mesma forma que honramos os soldados mortos”.
Se o insucesso é justamente o outro lado da moeda do desenvolvimento empresarial e da geração de riquezas, devemos, sim, buscar a responsabilização dos ainda excepcionais casos criminosos, desde que, com isso, não acabemos por criminalizar esses “soldados feridos”, que se depararam com infortúnios empresariais sem que necessariamente tenham escorregado em searas ilícitas.
DANIEL BÁRIL – Sócio coordenador da área de Insolvência e Reestruturação de Silveiro Advogados. Autor de livros na área de reestruturação empresarial, dentre eles “Recuperação Judicial de Empresas: Temas Atuais”
LUISA SIEBENEICHLER HENZE – Advogada da área de Insolvência e Reestruturação de Silveiro Advogados. Mestranda em Direito Empresarial na Universitat Autònoma de Barcelona (UAB)
Fonte: Jota
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